9.2.14

À Boleia (17)

Um convidado responde a questões nucleares ou essenciais sobre o cinema.
Entrevistado: Daniel Curval, autor do blogue num filme de godard.
Obrigado, Daniel, pela colaboração.

Caminho Largo: A qualidade abstracta de um filme está mais no argumento ou na realização? Ou em ambas?

Daniel Curval: O termo argumento (scénario) tem as suas raízes literárias no teatro mas rapidamente foi absorvido pelo cinema, como um modelo de orientação e descrição narrativa do que se pretende filmar.
A sinopse ou história, as cenas e até os diálogos podem ser definidos no argumento e numa fase final temos a planificação (découpage) nos planos que irão servir de base à rodagem do filme.
No cinema clássico não há filmes sem argumento, porém argumentos sem filme era e é o que mais há.
Veja-se o caso exemplar da indústria de Hollywood, nos seus tempos áureos, o argumento era o todo poderoso elemento na produção de um filme. A classe dos argumentistas dentro da indústria era fundamental para manter a mesma, e tinha um poder superior à classe dos realizadores (filmmakers).
Aquilo que hoje temos como clássicos do cinema norte-americano eram produzidos em série e os realizadores não passavam de tarefeiros dentro do sistema, mesmo aqueles que agora são (re)conhecidos como o realizador Michael Curtiz e o filme “Casablanca”. Aliás, este filme é um bom exemplo da força do argumento, seja ao nível da produção e da rodagem, como do filme em si.
Com a Nouvelle Vague e mais tarde num cinema mais experimental e de autor, o argumento vai diminuindo a sua importância decisiva na produção de um filme e muitas vezes não passa de um sumário, umas ideias alinhavadas, e muitos filmes nascem ao sabor da liberdade de algum improviso que alguns cineastas adoptam na rodagem de um filme e outros mais rigorosos seguem o argumento planificado à risca. Contudo, a montagem pode também dar um carácter abstracto a um filme.
A qualidade abstracta de um filme (é uma expressão muito discutível) depende muito da forma como o argumento é planificado em termos de imagem, planos e toda a gramática da linguagem cinematográfica de que a realização se apodera e utiliza.
Se pensarmos no cinema em termos de imagem+som, um mau argumento ou uma história banal pode ser salvo por uma realização criativa e uma montagem inteligente. Assim como uma realização medíocre, ou apagada em termos artísticos pode ser salva por um bom argumento, uma história forte. Para concluir, são vários os factores que interferem numa suposta “qualidade abstracta” de um filme.

CL: Atribuis muita importância à montagem num filme? Como se percepciona a sua existência e o seu valor?

DC: A montagem num filme é estruturante, ela é que define a arquitectura do filme em si. Na história do cinema a Montagem teve uma relevância determinante, veja-se o cinema formalista soviético, o expressionismo alemão e todo o cinema do período do mudo. A montagem é que organiza as ligações de todos os planos da planificação e rodagem de um filme, que estabelece quais as relações formais ou semânticas, os raccords, o tempo da imagem/plano.
A montagem pode ser dinâmica, acelerada ou mais lenta, joga com os planos como se fossem palavras, atribui-lhes o ritmo, a harmonia ou o contraste e a fluidez e com a união desses planos constrói as frases que constituem o texto cinematográfico.
Se um filme proporciona uma deleitosa leitura imagética é porque possui uma montagem eficaz, seja pela sua força, confronto ou até quase ausência.
Pessoalmente, prefiro uma montagem que permita observar atentamente a mise-en-scène, o plano e o seu enquadramento, tenho uma especial predilação por longos planos-sequência, que acabam por ser planos com uma montagem intrínseca.

CL: O cinema tem de ter entretenimento na sua essência? ou pode e/ou deve excluir essa componente?

DC: O cinema como manifestação artística, na sua essência, não tem que ter entretenimento, mas se tiver como numa boa comédia ou filme de aventuras ou um western, primeiro que seja bem feito, que não trate os espectadores como ingénuos ou outros qualificativos mais estúpidos. Prefiro um cinema que me provoque a reflexão, mas não rejeito o bom cinema de entretenimento (seja lá o que isso for), bem pelo contrário. Todavia, julgo que só o cinema norte-americano tem essa capacidade única de fazer bom cinema sem excluir o entretenimento. Há casos de excepção em algum cinema Asiático, da América Latina e até Europeu, mas penso que a indústria de Hollywood é exímia a produzir excelente cinema de entretenimento nos vários géneros cinematográficos. E quando os europeus tentam imitar esse cinema não lhes chegam aos calcanhares porque não possuem o savoir-faire do “the show must go on” nem o know-how do espectáculo. O entertainment cinema europeu é quase todo remendado do estilo à lá americana. De vez em quando lá aparece um filme europeu que se destaca como um entretenimento bem feito e que agrada a um público generalista. Contudo, tenho para mim que “Recordações da Casa Amarela” (1989) de João César Monteiro é um exemplo perfeito de um grande filme de autor, aliado a uma vertente de comédia lusitana. Se quisermos ser condescendentes este é o entretenimento que se exige ao cinema europeu.

CL: O conhecimento e a influência de toda a história do cinema é imprescindível para o sucesso e para a qualidade de um filme? Concretamente, porquê?

DC: Bastaria responder a esta questão unicamente com a palavra «Não», obviamente que não é imprescindível. O conhecimento da história do cinema pode ajudar, ou até pode ser prejudicial se influenciar em demasia, e apenas incutir a produção de pastiches. Porém, um conhecimento crítico da história do cinema é quase sempre uma mais valia seja na produção e realização de um filme ou na sua avaliação como espectador. Evidentemente que um cinéfilo ou um crítico só poderá reconhecer e avaliar justamente ao atribuir qualidade a um filme se possuir vastos conhecimentos sobre a história e a estética do cinema. Isto sem esquecermos que as idiossincrasias estão sempre presentes na produção/realização de um filme, assim como na sua recepção por parte do espectador, seja ele cinéfilo ou crítico ou muito simplesmente uma pessoa que gosta de ver filmes. Já o sucesso é coisa que só interessa ao merchandising e na maior parte das vezes não reflecte a real qualidade do filme (ou a falta da mesma).

CL: Comenta a seguinte citação do realizador Jean-Luc Godard: "Fotografia é verdade. Cinema é verdade vinte e quatro vezes por segundo."

DC: Na brincadeira, costumo dizer que o nome artístico completo deste grande cineasta é Jean-Luc “Boutade” Godard, ele é: le roi des boutades. Dos ditos espirituosos e inteligentes, hiperbólicos, alegóricos e quase parabólicos. Esta afirmação de Godard é um dos grandes exemplos da sua atitude de agente provocador, o que ele pretende, e faz isso muito bem, é pensar com as imagens e os sons através da arte, da literatura, do cinema e da história. Estas afirmações não são axiomáticas, são provocações à reflexão individual. Em particular esta que é citada é de uma paixão exacerbada pelo cinema, isto é, JLG reforça a importância do cinema como uma verdade absoluta, ora sabemos que isto é uma hipérbole cinéfila, porque nem a fotografia (imagem fixa) é a verdade e muito menos o cinema na sua repetição (imagem em movimento). A imagem fotográfica na captação não está separada de uma interpretação individual nem do aparelho/dispositivo que a regista e o mesmo se passa com o cinema. Se com a película (analógico) a manipulação da verdade sempre existiu, agora com o digital a verdade está extrapolada na sua manipulação. A questão filosófica do que é a Verdade e a suposta Realidade transcende a fotografia e o cinema. Os dixits de JLG são como pedras de arremesso para uma boa discussão cinéfila, incitam a uma reflexão sobre o cinema e a história, mas não são nenhum fiel depositário da verdade, e ainda bem.

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