28.10.12

C'era una volta il West (1968)

Aconteceu no Oeste, Sergio Leone


Era uma vez no Oeste, ou Era uma vez O Oeste, título e tradução do inglês - Once Upon a Time in the West, por sua vez traduzido do original C'era una volta il West - mais correcta e, sobretudo, mais fiel à essência do filme e ao conceito inicial criado. Para o português chega-nos a tradução Aconteceu no Oeste, que provém e insiste no erro do homónimo título inglês, e que pouco nos diz sobre a película de Sergio Leone.

Aconteceu no oeste, como poderia ter acontecido a nascente, passe a ironia, remetendo-nos, à partida, para mais uma história no velho Oeste Americano, que na certa se destacará por um vilão mais carismático ou por um par central mais romântico que nunca. E é assim que idealizamos o filme, se nos restringirmos apenas ao título do mesmo e não olharmos para o verdadeiro (e único) título - o original, o italiano, o tal que nos anuncia a queda de algo, o declínio de anos vividos ou o derradeiro fim de um estado e de um sistema de costumes.


Ainda mal nos aconchegamos no nosso lugar para a sessão, já estamos desaconchegados, digamos, perante o silêncio e a tensão estrategicamente desenvolvida à nossa frente. Tudo se desenha com tamanho detalhe e minúcia que os próprios minutos parecem não avançar. Estamos, pois, num cenário à parte, acabamos de aterrar num local distante - uma estação - incaracterística e, à falta de melhor, ficamos também à espera que o comboio chegue, seja lá o que isso for, ou o que isso nos traga, melhor dizendo. Acção, pistolas e tiroteio, inevitavelmente, mas estranhamente, na medida em que nada sabemos sobre os protagonistas da cena em questão, apenas que um suposto ajuste de contas está inerente. Culminamos, desta forma, no expoente de uma cena que terá todos os motivos para lhe tecer rasgados elogios, desde os ângulos e enquadramentos arquitectados ao pormenor, até à montagem sequencial e harmónica que potencia as personagens e o poder da antecipação, como ainda por um trabalho notável de sonoplastia. De génio, e é dizer pouco.

Introduzida que está uma das personagens principais (a que sai ilesa do confronto), seguimos para outra, e do suposto herói passamos para o vilão, tal como da estação passamos para o campo. Agora, por terras "ainda" longe do tão próspero caminho-de-ferro, seguimos outras pessoas, aqui não um bando ou uma gangue, antes uma família, e portanto, o retrato de hábitos diários, que ao que parece não tão diários quanto isso - é evidente que se está a preparar alguma ocasião especial. As poucas palavras indiciam isso mesmo e o silêncio mais uma vez adensa-se, voltando a fazer das suas. Estamos, então e novamente, com a tensão lá em cima e preconizamos algo, desta vez mais forte, quiçá mais preponderante para a história. E, nada acontece. Mau sinal. Sinal de que não acabou e que virá mais, e aí sim para devastar, para introduzir o propósito e o cerne de toda a trama. É senão, o mau da fita e os seus desígnios. Está encontrado, pois, o vilão, o adversário, e os opostos estão preparados para se começar a atrair.

Tudo o que virá a seguir se desenhará sob os mesmos contornos e sob a mesma mecânica episódica de filmar. E é dessa mecânica, dessa matéria-prima que o filme se faz, marcado que está agora o ritmo. A comprovar essa tendência estão as duas cenas seguintes que apresentam mais dois protagonistas: a personagem feminina, que confere a elegância e o balanço emocional precisos e cirúrgicos, e a personagem carismática, por assim dizer, aquela que acrescenta a descontração que o filme equitativamente possui, tantas vezes necessária para assentar e retemperar forças. As referidas cenas são muito bem filmadas, para não variar, e à semelhança das anteriores dão primazia às expressões, aos olhares, ao tempo como personagem (mas sem pressas), respirando quase sempre nas entre-linhas. O folgo ou a descompressão acontece porque há silêncios, mas também e principalmente porque a música se intromete, de uma forma brutal e emocionalmente fracturante.


Posto isto, as personagens principais estão apresentadas e perfeitamente definidas (em desempenhos exemplares a propósito), mas ainda por explorar. Ao longo do filme, a circulação das mesmas se dá consoante o próprio argumento as convoca, equilibrada e proporcionalmente, assim como a banda sonora surge aliada aos protagonistas e ao contexto presente (não será a faixa correspondente a Jill das mais belas de sempre?). Existe, pois, como que uma sequência de capítulos construindo a história, uma sequência de sub-narrativas paralelas (e perpendiculares) que, eventualmente, se cruzarão e culminarão de vez no desenlace final, sempre numa cadência certa e doseada quanto baste.

Para além disso, pode-se dizer que tudo o resto está, de igual modo, ao mais alto nível, desde a fotografia, perfeita no retrato interior de uma América desértica, até a uma cenografia de um primor extasiante, bem como ainda por uma banda-sonora do melhor que Ennio Morricone nos deixou - a beleza e a versatilidade das músicas estão, como já foi dito, na correspondência que existe entre protagonistas e determinadas faixas, ao ponto de marcar e imortalizar cada plano e cada cena. A realização é, nesse sentido, também ela genial, sempre atenta à mensagem por de trás tanto quanto sensível às linguagens, ora no detalhe, ora na fruição e contemplação de panorâmicas. Dentre inúmeros planos fabulosos e potencialmente com muito para analisar, destaque especial para uma das cenas finais, em analepse, em que tudo se mexe, tudo faz parte da orquestra e contribui para a realização atempada, crescente e apoteótica de uma revelação e posterior duelo final a todos os níveis extraordinários e deveras prodigiosos.

No trabalho de montagem e no departamento de som o assombro continua, já referido particularmente na cena inaugural, pelo que mais uma vez encontramo-nos perante um verdadeiro exemplo de perfeito encaixe entre tudo o que constitui um filme, no caso enquadrado e mantido em quase três horas de duração, mas preparado para mais se tal fosse pertinente, tal o encadeamento e lógica perceptíveis.


Sergio Leone brinda-nos talvez com a sua melhor obra, pelo menos no que a valores estéticos e artísticos dizem respeito. Se é notória aqui uma forte influência dos westerns clássicos americanos, de que John FordHoward Hawks, Anthony Mann, entre outros, fazem parte, também associamos o próprio sub-género spaghetti (ao qual este filme pertence) como o factor preponderante e a principal influência para ingerir a audácia e uma nova identidade que, não raras vezes, vinha a faltar aos clássicos do género maior.

Por outro lado, a evolução desde A Fistful of Dollars (do mesmo Leone) é evidente, dando a sensação que o cineasta se foi completando e ambicionando a cada novo projecto um voo maior. Um pouco como Tarantino fez (e vem fazendo) anos mais tarde, realizador que sofreu imensa influência destes westerns à italiana, e sobretudo, do mestre citado.


C'era una volta il West contém, deste modo, tanto por onde depurar e apreciar que é absolutamente delicioso e refrescante, sendo que tem sobrevivido (e se elevado) com o passar do tempo, nunca se esgotando às primeiras visualizações. Há sempre mais qualquer coisa por ver, por descobrir e por degustar outra vez. A mensagem subliminar também é ela mais que pertinente e marcante na época que se insere a narrativa - o início do fim do Oeste, tal como o conhecemos de então, destruído pelo progresso, pelo dinheiro e pelo poder invisível.

Diria que esta obra, acima de tudo, condensa e homenageia o western em si, ou o estilo nas suas várias correntes, como nunca antes se tinha feito. Artisticamente falando, o filme extravasa qualquer género e sub-género (ainda que se inserindo neles), tal como ultrapassa referências e estereótipos vincados em várias décadas, destacando-se mesmo como um dos melhores filmes jamais realizados. Obra-prima.

"Do you know anything about a guy going around playing the harmonica? He's someone you'd remember. Instead of talking, he plays. And when he better play, he talks."
Cheyenne


Jorge Teixeira
classificação: 10/10

10 comentários:

  1. Este filme é enorme, em todos os sentidos. E também é um dos meus favoritos. Podia até só ter aquela sequência inicial, que já era uma obra-prima. Bom texto.

    Cumprimentos

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  2. Este é provavelmente um dos melhores 10 filmes já feitos. Demarca-se do western-spaghetti mais corriqueiro e dá uma chapada nas fuças dos extremistas do western clássico americano, que não conseguem encontrar argumentos que denigram o filme. É uma daquelas coisas que me dá orgulho em ser europeu.

    Leone queria ter os três de O BOM, O MAU E O VILÃO nos papeis dos assassinos da estação de comboio. Uma pena que não se tenha realizado essa ideia.

    Espero voltar a ver mais alguns westerns europeus por aqui companheiros!

    --
    Pedro Pereira

    http://por-um-punhado-de-euros.blogspot.com
    http://destilo-odio.tumblr.com/

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  3. Grandíssimo Western, é mesmo o meu preferido. Em tempos chamava-lhes o western dos cowboys de olho azul ;)

    Um assombro de filme populado por uma raça antiga de homens.

    Tudo é bom, mas entre às personagens o Harmônica é uma personagem épica.

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  4. PMF, Obrigado. A cena inicial é tão forte, tão marcante e tão genial que figurará sempre, estou convencido, como referência para toda a história do cinema.

    PEDRO PEREIRA, Sem dúvida, este filme não deixa a desejar em nada relativamente a alguns filmes de referência do western americano, antes e depois dele. Por outro lado, ainda extravasa o próprio género, tal como dizes, demarcando-se como uma obra verticalmente essencial, sobretudo no que à estrutura visual e de estilo diz respeito. Não sabia essa curiosidade referente aos protagonistas de O Bom, O Mau e o Vilão. Fica a nota. E certamente que aqui se abordarão mais westerns, europeus inclusive, não fosse o género um dos preferidos cá da casa.

    NUNO PEREIRA, É também, e actualmente, o meu western preferido. Tremendamente genial para lhe resistir. Não consigo destacar nenhuma personagem, gosto muito de todas as principais, mas sim, Harmónica é daquelas épicas de tão fracturante que é.

    Obrigado pelos comentários. Voltem sempre!

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  5. Como o Pedro Pereira disse, os detratores buscam argumentos puristas de todas as formas para a denegrir esse colosso cinematográfico, mas despencam no vazio sem nunca conseguir denegri-lo. Realmente ultrapassa qualquer gênero e sub-gênero.

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  6. APRIGIOHISTORIA, Sem dúvida, ultrapassa qualquer categoria e qualquer tipologia, afirmando-se como um dos melhores filmes já feitos.

    Obrigado pelo comentário. Volte sempre.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  7. É de facto um grandioso filme. As palavras que dedicas no que diz respeito à apresentação das quatro personagens espelham-se precisamente o que sinto. Uma apresentação exemplar que dedica o tempo necessário a cada personagem e que acaba por as distinguir tão bem.
    Montagem, interpretações, fotografia, sonoplastia, banda-sonora, realização, etc. Tudo converge da melhor maneira.
    Parabéns pela análise, não há muito mais que se possa acrescentar :)

    Cumprimentos,
    Rafael Santos
    Memento mori

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  8. RAFAEL SANTOS, Obrigado. E não há muito mais a dizer, o filme fala por si, de facto. Partilhamos aqui do mesmo gosto. Uma obra-prima.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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  9. Também é o meu western preferido, o grande western, o tal que levarei para a ilha deserta mas com leitor de DVD ou BD, entre um punhado de outros poucos filmes porque o barco não tem muito espaço :D Desde que começa até que acaba é de deixar qualquer espetador abismado com a sua escala e imponência. Só voltei a reencontrar uma escala tão grande muito recentemente, n'O MASCARILHA do Gore Verbinski, que não sendo um spaghetti também honra as influências deste grande de Leone.

    Roberto Simões
    CINEROAD
    cineroad.blogspot.com

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  10. ROBERTO SIMÕES, Um filme magnífico não é?! Poderoso e eterno até às entranhas. Estamos, mais do que nunca, totalmente de acordo, isto no que ao filme e no que à preferência diz respeito.

    Cumprimentos,
    Jorge Teixeira
    Caminho Largo

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